O ensino público dividiu os portugueses em três grupos: a casta, os carenciados e os desmancha-prazeres.
A casta do ensino público caracteriza-se por fazer discursos inflamados em defesa da escola pública; por em alguns casos gozar duma comparativamente boa condição profissional à conta dessa escola pública – o caso dos sindicalistas – e muito particularmente por não confiar durante a escolaridade obrigatória os seus filhos e netos ao ensino público, a não ser muito excepcionalmente nas chamadas turmas dos filhos dos professores.
Os carenciados são aqueles que colocam os seus filhos no ensino público e a quem dizem que ele é gratuito. É em nome deles que são feitas todas as reformas do ensino, sendo que são também eles as principais vítimas do insucesso dessas reformas. Arranjam frequentemente moradas falsas para que os seus filhos vão para uma escola pública que lhes disseram melhor e fazem telefonemas a professores conhecidos para que lhes arranjem uma turma sem problemas. Mas nunca assumem isso publicamente, porque tal seria imediatamente penalizado pelo discurso da casta que controla a escola pública e que garante que não é correcto procurar transferir os filhos duma escola pública para outra invocando outro argumento que não o da morada.
Estes dois mundos, o da casta e o dos carenciados, viveram em harmonia, sempre com o primeiro repleto de teses pedagógicas e sociais para experimentar nos filhos dos segundos. E com os segundos a nunca terem consciência de quanto custa o ensino dito gratuito. Por fim, chegaram os desmancha-prazeres.
Os desmancha-prazeres são os pais cujos filhos frequentam as escolas com contrato de associação. Eles vieram dizer o óbvio: não existe ensino gratuito. O custo real por aluno numa escola pública dita gratuita é provavelmente dos mais elevados do mercado. Que outro mérito não tivessem estes pais já tiveram o de explicar que não existe ensino gratuito.
O ensino, seja nas escolas com contrato de associação, seja nas escolas públicas, é pago pelos contribuintes portugueses. E é importante que se frise que são os contribuintes quem o paga e não o Estado, o Ministério da Educação ou o Orçamento. Nenhuma destas três entidades gera riqueza, donde não dão dinheiro a ninguém. Distribuem-no. E é aí que chegamos ao cerne desta questão: devem distribuí-lo a quais escolas? Parece-me ser óbvio que, durante a escolaridade obrigatória, o devem distribuir à escola que as famílias escolherem. O Estado português impõe vários anos de escolaridade obrigatória. Ou seja, impõe uma despesa que em boa parte os contribuintes suportam através dos seus impostos.
Qual é o argumento para que se entenda que esse dinheiro deve ir para uma escola com contrato de associação ou para uma escola pública? A escolha das famílias.
Porque as famílias têm o direito de escolher. E em geral escolhem bem, ou seja, escolhem aquelas escolas que acham que funcionam melhor, porque aquilo que faz de cada uma delas melhores ou piores escolas é sobretudo a forma como elas são geridas e não o QI que a casta insiste ser superior nas classes altas. (Há poucas coisas mais vergonhosas que a ideia enraizada na casta de que os resultados escolares dos filhos dos mais pobres são uma espécie de destino social e não tanto o resultado duma escola que funciona mal e desistiu deles.)
A escola pública tornou-se num factor de imobilismo social e a casta sabe disso. Daí a irritação social gerada pelos pais que têm protagonizado esta contestação das escolas com contrato de associação. Afinal eles assumiram como reivindicação aquilo que os outros calam, quando dão moradas falsas: a escola é importante para o futuro dos seus filhos. Muitos deles não têm apelidos sonantes e não têm fortunas significativas, logo a escola surge-lhes como um local onde depositam expectativas para os seus filhos. A casta sabe bem que a escola pode ser determinante, mas não tem de reivindicar nada: inscreve os seus filhos na escola certa. Quanto aos filhos dos outros a casta, espera que se comportem de forma adequada ao seu estatuto social: terão carradas de compreensão se espancarem professores e arranjam-lhes animadores culturais, em vez de professores de Matemática. Para o que a casta não tem paciência é para o desaforo daquela gentinha que pretende que os seus filhos frequentem escolas dirigidas doutro modo. (A casta pode estar descansada, porque inúmeros colégios nunca pretenderão aderir a este sistema que só lhes traz arrelias e ingerências estatais. Por exemplo, em vários colégios particulares os alunos foram poupados não na totalidade mas em boa parte às consequências daquele desperdício horário que dava pelo nome de Área de Projecto, que era tão importante, mas tão importante para a escola inclusiva, interactiva e de sinergias que agora desapareceu sem que se lhe desse pela falta.)
Aquilo que está agora em causa é saber se a escolaridade obrigatória implica frequentar uma escola que as famílias não querem, que não é mais barata e que não apresenta melhores resultados. Num país em que as reuniões de pais pecam pelas cadeiras vazias, milhares de pessoas mobilizaram-se para defender a escola dos seus filhos. E a resposta do Estado português é que esses alunos devem passar a frequentar a escola dita gratuita, porque o ministério resolveu duplicar e triplicar a oferta. Porquê? Apetece responder: porque o lobby dos empreiteiros pode muito, porque assim se justificam mais lugares nas direcções regionais e mais professores destacados em funções disto e daquilo. Mas infelizmente não é só por isso: uma família que no acto da inscrição acha que tem o direito de escolher as escolas, porque tem delas melhores referências, ou porque prefere o modelo de gestão que estas apresentam é uma família que se relaciona com o Estado de uma forma muito mais exigente daquela outra que é informada que os seus filhos vão para a escola A ou B, porque o ministério assim o determinou. E note-se que o ministério pode mudar de determinação a duas ou três semanas do início das aulas, como aconteceu no início deste ano escolar, quando entendeu por bem fechar 700 escolas, que nem sequer dizia quais eram e pré-avisando que não autorizaria a colocação de professores nas escolas que as famílias e as autarquias mantivessem abertas.
Esta guerra do Estado com as escolas com contrato de associação é portanto o reflexo de um Estado que deixou de se ver como um garante de direitos e foi capturado por uma casta que transformou o discurso da igualdade e do gratuito num dogma que assegura os seus privilégios e os dos seus filhos.
Helena F. Matos
Reitor
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