Ele há coincidências do diabo. Ou então é outra coisa diferente. Mas não há dúvida que é difícil explicar a relação do PS com o Estado de Direito a não ser que acreditemos em bruxas.
É que as coincidências são muitas. Assim de repente lembro-me da “coincidência” da não recondução de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República depois de um mandato unanimemente elogiado, assim como da “coincidência” não recondução do presidente do Tribunal de Contas, um homem íntegro e exemplar, Vítor Caldeira, que servira para cumprir dois mandatos como presidente do Tribunal de Contas europeu mas não serviu para exercer dois mandatos em Lisboa. Por “coincidência” os dois responsáveis afastados eram daqueles que costumavam cortar a direito, sem olhar a conveniências e sem tratar de cuidar se estavam, a não, a “meter-se com o PS”. Por coincidência, foram despedidos por entre elogios sonsos e mal disfarçados suspiros de alívio.
Claro que não podemos esquecer estas coincidências quando recapitulamos as muitas “coincidências” do processo que levou à nomeação de José Guerra para a Procuradoria Europeia.
Desde o início que se sabia que esta escolha pressupunha a independência desse magistrado e, por isso, o processo europeu não entregou aos governos o poder de designar os procuradores de cada país – não se espera que o vigiado designe o vigilante. Cada Estado devia sim indicar três nomes, esses nomes deveriam depois ser avaliados por um comité de peritos, e a escolha final seria feita pelo Conselho Europeu seguindo a recomendação desse comité de selecção.
Sabe-se há muito como Portugal provocou escândalo ao ser um dos três países que recusou essa escolha e impôs outro nome. O que se sabe menos é que a cronologia do caso – aliás todo o caso – está cheio de imensas “coincidências” difíceis de explicar.
A primeira “coincidência” estranha é o Conselho Superior do Ministério Público, que seriou as três as candidaturas portuguesas, só ter definido os critérios de seriação depois de conhecidos os candidatos, o que altamente irregular. Depois é estranho que tenha dado pouco peso a critérios como a experiência ao combate à corrupção, quando esse será precisamente o objecto do trabalho da Procuradoria Europeia, o que explica que tenha classificado pior a candidata que o júri europeu viria a considerar como a mais qualificada. Por “coincidência”, vejam lá, pelo menos dois dos cinco membros do júri português são ou do PS (o advogado Magalhães e Silva) ou do círculo da ministra Van Dunem (a jurista Maria João Antunes).
Mas como o regulamento europeu não previa que se seguisse qualquer preferência prévia por parte dos Estados, o júri internacional avaliou livremente e, a 19 de Novembro de 2019, o governo português tomava conhecimento que a escolhida era Ana Carla Almeida – e que ainda por cima ela fora muito elogiada e considerada “a melhor para a função”. Imagina-se o calafrio: essa era a procuradora que dois meses antes, a 18 de Setembro, ordenara à Polícia Judiciária que passasse a pente-fino o gabinete do ministro Eduardo Cabrita no âmbito do caso das golas inflamáveis. Ou seja, entre o envio do seu nome para Bruxelas como candidata a esse lugar europeu e a recomendação do júri de peritos, Ana Carla Almeida cometera o erro de “meter-se com o PS”.
Sabemos hoje que, certamente mais uma vez por coincidência, Francisca Van Dunem não perdeu tempo. No dia 26 de Novembro realizou-se uma reunião no seu gabinete, como a sua presença, para combinar os argumentos que iriam ser invocados junto do Conselho Europeu para fazer cair o nome de Ana Carla Almeida e impor o de José Guerra. É nessa reunião que Miguel Romão recebeu as instruções para escrever o documento que tanta controvérsia tem suscitado nos últimos dias. A tese oficial – a tese da ministra e a que resulta também da leitura da nota de demissão de Miguel Romão – é que os “lapsos” foram apenas isso, lapsos. Mais uma vez, no entanto, foram “lapsos” que, por “coincidência” convergiam todos para reforçar a narrativa desejada pelo Governo português: a de que José Guerra tinha mais qualificações do que Ana Carla Almeida.
Sabendo-se hoje que Francisca Van Dunem esteve na reunião em que se combinaram os termos em que o documento devia ser elaborado ainda mais inverosímil se torna a versão, veiculado em comunicado pelo primeiro-ministro, que esse documento só passou pelo seu gabinete “para arquivo”. Ela teve de o ter lido e teve de ter notado que lá se apresentava José Guerra como procurador-geral adjunto, categoria que ele não tinha e ela não podia deixar de saber que não tinha, pois fez toda a sua vida profissional no Ministério Público. Ora, por “coincidência”, ser ou não ser procurador-geral adjunto é um detalhe importante no processo, pois era uma condição para ser procurador europeu que nenhum dos candidatos portugueses antes preenchia. Passando a preenchê-la José Guerra passava automaticamente para a frente de Ana Carla Almeida. É o chamado “lapso” altamente conveniente.
Agora perguntar-se-á: mas porquê José Guerra? Já percebemos porque não Ana Carla Almeida, mas haverá “coincidências” que ajudem a explicar José Guerra?
Digamos que sim. Primeiro, ele é, seguramente por coincidência, irmão de João Guerra, o procurador do caso Casa Pia a quem António Costa dizia que era preciso ligar com urgência a ver se se conseguia evitar a prisão iminente de Paulo Pedroso. Por coincidência também, é irmão de um outro Guerra, Carlos Guerra, que era o presidente do Instituto de Conservação da Natureza no tempo em que este torceu pareceres para viabilizar o Freeport – o famoso Freeport. E já que falamos do Freeport, José Guerra trabalhou no Eurojust sob a liderança de José Lopes da Mota, que por acaso integra hoje o gabinete de Francisca Van Dunem apesar de ter sido condenado a uma pena de suspensão de 30 dias por ter pressionado os procuradores do Ministério Público que estavam a investigar, olha a coincidência, o Freeport e José Sócrates.
Eu podia continuar. Entre “lapsos”, “coincidências”, “narrativas” que depressa se transformam em efabulações rocambolescas, há aqui um padrão antigo de gente que se comporta como se fosse dona do Estado, das instituições e do país. Estão tão habituados que nem percebem que estão a dar cabo do Estado de Direito, que estão a minar a própria democracia». José Manuel Fernandes