A Ucrânia e Taiwan são brincadeiras. Um destes dias, a Terra acordou com a notícia de que Demi Lovato voltou a permitir ser tratada pelos pronomes “she” e “her”. Eu próprio fiquei tão abalado que fui imediatamente tentar descobrir quem é Demi Lovato. É uma cantora americana, diz a internet. Diz ainda a internet que a senhora tinha decidido em tempos deixar de ser mulher. Ou deixar de ser somente mulher, não percebi bem. Percebi que há um ano e pouco Demi Lovato começou a exigir que a tratassem unicamente pelos pronomes “they” e “them”, como em: “Ele(a)s não cantam nada de jeito, mas guincham que se fartam” e “Ouvir as cantilenas dele(a)s é equivalente a um transplante do fígado sem anestesia”.
Não sei de que maneira estes progressismos, evidentemente louváveis, se aplicam em certas situações da vida prática. Se, na hora da conta do restaurante, a pergunta “Quem paga hoje?” tiver a resposta “São ele(a)s”, é capaz de haver confusão à mesa. Porém, pior será na esquadra, quando o interrogatório da testemunha procura esclarecer a posse da arma que acabou de chacinar 14 transeuntes: “É dele(a)s!”. E na fila de suspeitos estão oito criaturas.
Em qualquer dos casos, o importante é respeitar os sentimentos das pessoas. E, agora, o sentimento de Demi Lovato (e o seu agente) sugere-lhe voltar a admitir os pronomes anteriores sem rejeitar os pronomes entretanto adoptados. Isto aconteceu na terça-feira, data em que a senhora se sentiu “mais feminina”. Para a semana, é muito possível que haja novidades. Não espantaria que ela/ele(a)s visse(m) no Ali Express uma barrete ribatejano assaz giro e decidisse(m) identificar-se exclusivamente como marialva, reivindicando os pronomes respectivos. Até é plausível que Demi Lovato renuncie por três meses à espécie humana e se assuma como lontra. Ficarei atento aos telejornais e às aquisições do Oceanário.
Restam dois ou três problemas. Um é a notória instabilidade dos apetites mencionados. Demi Lovato tem 29 anos (se ela concordar com a certidão de nascimento, claro). Apesar disso, viaja entre sexos com a regularidade com que um morador de Gaia que trabalha no Porto atravessa o Douro. A sorte é Demi Lovato, que se considera “bastante fluída”, se limitar a mudanças gramaticais (e não ter de suportar o trânsito do Freixo). Imagine-se se cada epifania da senhora terminava no bloco operatório, com uma junta médica em volta dos genitais. Imagine-se que, em vez de uma adulta, estávamos a falar de um adolescente, que tipicamente altera a opinião de dez em dez minutos. Imagine-se que há países cujas legislações concedem ao adolescente, o exacto adolescente viciado em TikTok e em défice cognitivo, a opção de ir à faca ou receber “terapia” hormonal. Parecendo que não, é chato. Chato e um bocadinho criminoso.
É que é legítimo duvidar da estabilidade de convicções assim. Salvo exemplos raros, clinicamente confirmados e reconfirmados, as cambalhotas “identitárias” prendem-se com modas peculiares, à semelhança dos chumaços nos ombros. Em 2002, que já soa ao Paleolítico Inferior, havia 0,013% de americanos que se “identificavam” como transexuais. Em 2011, a percentagem subira para 0,023%. Em 2016, eram 0,6%. Em 2022, 5% dos jovens adultos nos EUA afirmam-se “transgender” ou “não-binários”. Com crescente frequência, a escola e os “media” condenam os 95% de choninhas reaccionários e supremacistas que se adequaram à reles biologia. Não tarda, teremos nas ruas desfiles da exótica minoria de homens e mulheres que não se acham mulheres e homens.
Descontada a mutilação de menores de idade, por mim tanto faz. A propósito de descontos, apenas gostaria que não me descontassem os impostos para patrocinar o conforto emocional alheio. A propósito de impostos, lamento que a defesa inflamada das “identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como “não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos. E não faltam injustiças e opressões similares. Há gente que se identifica com “etnias” diferentes e, em lugar de aplausos, recebe uma bordoada nas costas, nem sempre metafórica. Não é preciso recordar Rachel Dolezal, a caucasiana que sonhou ser negra e terminou excomungada pela sociedade. Recentemente, uma actriz portuguesa de telenovelas surgiu de trancinhas no cabelo e viu-se informada, com péssimos modos, de que só os negros estão autorizados a usar trancinhas.
Porque é que os “activistas” das “causas”, que berram pela liberdade na escolha do sexo e do “género”, abominam a mesmíssima liberdade na escolha da “raça”? Porque é que se pode ignorar o aparelho reprodutivo que o acaso nos deu e é blasfémia desprezar o tom da pele com que se nasce? Porque é que uma coisa é considerada subjectiva e a outra não se deixa alterar nem a tiro?
Conheço os “argumentos” que “justificam” a contradição (a “apropriação”, o “voluntarismo”, etc.). Não me apetece debatê-los. Não se debate com zelotas e não se debatem patetices. Noto, por desfastio, que aplaudir a “fluidez” no “género” e proibi-la na “raça” implica aceitar que as “raças” possuem características distintas, que essas características são decididas pelos “activistas” do ramo, e que os “activistas” impõem estereótipos a que a humanidade, devidamente retalhada em categorias, deve sujeitar-se sem um pio. Isto não é só segregacionismo, ou puro racismo: isto é medonho. As ideologias “woke” estão radicadas na intolerância. Naturalmente, fingem o contrário. Demi Lovato, sedenta de holofotes e da aprovação deste circo ridículo, também finge ter dois “géneros”. E dois neurónios. Alberto Gonçalves, Observador.
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